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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CEARÁ: CRIANÇAS SÃO TREINADAS PARA MATAR OU MORRER PELO TRÁFICO!

O perfil mudou. Em vez das ruas, as crianças permanecem na própria comunidade, sendo coagidas pelo tráfico


Na disputa por território, quando não matam rivais, morrem







FOTOS: KID JÚNIOR
Sem nada para comer em casa, os meninos vão buscar o alimento nas ruas, dormindo, muitas vezes, em terminais de ônibus. Hoje, servem ao tráfico, pois perceberam que ele lhe dá condições de permanecer na própria comunidade






FOTOS: KID JÚNIOR

Invisíveis aos olhos da sociedade, crianças e adolescentes, após passarem por conflitos familiares ou, de alguma forma, serem negligenciados pelos pais, acabam optando por viver nas ruas. A falta de afeto e, muitas vezes, até do essencial, como o alimento, é o que os leva às ruas, onde passam por todo tipo de adversidade. Sem que tenham opção de escolha, acabam tendo a infância e a adolescência - entre as fases mais bonitas da vida - furtadas pela miséria. De uns anos para cá, entretanto, observa-se uma mudança no perfil da situação de rua de Fortaleza.


Antigamente, era muito comum encontrá-los cheirando cola ou solvente pelas ruas do Centro da cidade. Geralmente, estavam em grupos, concentrados, principalmente, nas praças da Estação, Lagoinha, José de Alencar e Igreja da Sé. Hoje, continuam saindo de casa pelos mesmos motivos: os laços fragilizados com a família. No entanto, em vez de irem para os tradicionais pontos do Centro, permanecem na própria comunidade, sendo cooptados pelo tráfico de drogas, onde assumem o pior "serviço".


Para descrever essa mudança de perfil da situação de rua de Fortaleza, o Diário do Nordeste publica, a partir de hoje, sempre às segundas-feiras, a série "Vidas nas sombras da rua". O material se debruçará sobre a questão do crack, dos homicídios na população jovem e destacará, ainda, a as carências da área, desde a exatidão dos dados sobre o tema até a precariedade.


Status


"Eles são ludibriados de tal forma que não se veem nesse papel. Para eles é status, um respeito moral. Mas, na verdade, estão sendo induzidos para ficar na linha de frente, sendo os 'soldados da guerra'. Tentam matar os rivais e, quando não matam, morrem, quando não morrem, cometem deslizes no sentido de quebrar alguma regra imposta pelo tráfico.


Às vezes, a gente encontra meninos nas ruas do Centro ou da Beira-Mar vindos dessa situação, por estarem ameaçados de morte. Estavam muito envolvidos na criminalidade ou perderam droga", explica Antônio Carlos da Silva, educador social da organização O Pequeno Nazareno.


Mesmo que sejam apreendidos pela Polícia e percam a droga, eles ficam com a dívida. "Não há um perdão", explica o educador. Como não têm como pagar, para não morrerem, eles acabam buscando refúgio nas ruas. "Já me deparei com vários casos desses. Eles chegam desnorteados. Têm vergonha de pedir, então passam muita fome. Aos poucos, vão se adaptando e encontrando estratégias de viver naquele espaço e, às vezes, ficam. Ou a família vai atrás e consegue mandar para outro local. Esses meninos acabam não entrando para as estatísticas, apesar de ser neste contexto onde está acontecendo esse extermínio da juventude", denuncia.


Outra característica do crack é que trata-se de uma droga que segrega os meninos, diferente da cola, que agregava. "A cola tinha uma característica de ser compartilhada. Ela é muito barata, então rapidamente eles conseguiam juntar dinheiro para comprar e passavam o dia inteiro cheirando, entravam pela noite. Não existia essa fissura do crack de usar mais e mais", explica.


O educador social comenta que o crack acaba criando um distanciamento entre as crianças e adolescentes em situação de rua. Em outros tempos, eles ficavam concentrados em grupos de 30 e até 40 pessoas. Enquanto hoje, se tornaram escravos da droga. Para conseguirem dinheiro para usar crack o dia inteiro, como desejam, vão para bairros e outros locais menos povoados por pessoas em situação de rua. Foi essa a estratégia que encontraram de conseguir dinheiro para manter o vício.


Impacto


Por não estarem mais aglomerados em grandes grupos, muitas vezes eles acabam passando despercebidos. Para a sociedade, não é tão impactante. Por isso, tornou-se comum encontrar pessoas vagando pelas ruas da cidade, parecendo zumbis. Essa mudança de perfil, na qual predomina o uso do crack, dificulta o trabalho dos educadores sociais - que fazem abordagem de rua, através das chamadas busca-ativa.


Por não terem inserção dentro das comunidades, eles encontram dificuldade de chegar até esses meninos, em decorrência da situação incômoda imposta pelo tráfico de drogas. "A presença de educadores interferindo na dinâmica deles não é bem vista. Os traficantes têm interesse que os meninos fiquem do lado deles. Já aconteceu, inclusive, situações de colegas serem ameaçados de morte", afirma Antônio Carlos. Em alguns casos, o educador tem que pedir permissão ao chefe do tráfico, e só quando ele concede é que conseguem realizar algum trabalho com os meninos.


Quais as artimanhas para driblar a miséria?


Sem nada para comer em casa, João Pedro (nome fictício), com apenas 9 anos, se viu obrigado a buscar o alimento para matar a fome nas ruas. Sem rumo certo, vagava pela cidade, entre os terminais do Antônio Bezerra e do Siqueira pedindo a transeuntes alguns trocados. "A minha mãe não tinha nada para me dar para comer, então eu fui mesmo. Eu gostava de ficar no terminal. Pedia dez, 50 centavos. Se visse uma pessoa comendo eu pedia. Chegava em um restaurante e eles quase que não davam. Pensavam que nós 'ia' roubar", relata o menino, hoje com 14 anos.


Muitas de suas dormidas foram no Terminal do Siqueira, debaixo de um banco onde passou fome e, principalmente, frio. O único objeto que dispunha era um papelão que utilizava para cobrir o chão. E, apesar de conhecer outros meninos, preferia ficar sozinho. Assim Pedro viveu durante meses, até ser abordado por um educador social.


Passou por três instituições. Chegou, inclusive, a ficar abrigado durante quatro anos em um sítio do Pequeno Nazareno, em Maranguape. Porém, quando retornou para casa, pouca coisa havia mudado. Foi quando começou a enveredar para o mundo do crime. Tornou-se avião (comercializa a droga) e começou a praticar assaltos dentro da comunidade em que reside, no Planalto Ayrton Senna. Ele percebeu que o tráfico lhe dava condições de permanecer no próprio bairro e, dessa forma, deixou de ir aos terminais. Pedro tem outros 14 irmãos. O mais velho também está envolvido com o mundo do tráfico. Já um mais novo, de 12 anos, está internado no sítio em Maranguape.


A sua mãe, após visitar um irmão que está preso, conheceu um presidiário e, desse relacionamento, já teve sete filhos. Ao conhecer a morada de Pedro fica muito fácil entender o porquê de ele ter ido parar nas ruas. A casa, um pequeno vão de chão batido e paredes sem reboco, toda esburacada, é onde vive com a mãe e os demais irmãos e irmãs. As camas ficam uma ao lado da outra.


Apenas uma pequena cômoda, caindo aos pedaços, acomoda as roupas e brinquedos das irmãs pequenas. A casa não tem fogão e nem geladeira. O espaço destinado ao banheiro, pelo mal cheiro, dá indício da situação de insalubre que a família vive.


Apesar da pouca idade, Pedro tem uma lista de amigos que perdeu para o tráfico. "Foi um bocado. Tem o finado Leandro (nome fictício) e um primo também. 'Nós' não pode andar para muito longe, só por aqui. Se passar, pode ser que um do outro lado pegue. 'Nós' não pode se bater de frente com os outros meninos que conhecem 'nós'. Até outro dia, a gente jogava bola na quadra, mas 'crescemo' e 'tamo' aí". Sem saber falar sobre o futuro, vive um dia de cada vez. "O amanhã só quem sabe é Deus. Não sei se eu vou sobreviver. Ando com um bocado de amigos e não sei nem se eles têm treta", diz.


Envelhecida demais para os seus 32 anos, a mãe de Pedro (identidade preservada) sonha com um futuro diferente para os seus filhos. "Espero que o futuro deles seja melhor que o meu. Eu nunca estudei, nunca tive oportunidade, queria que eles estudassem para ser alguma coisa na vida, porque é difícil", desabafa.


Luana Lima
Repórter
Diário do Nordeste


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